08 fevereiro 2009

Os fatos não penetram no mundo em que vivem nossas crenças*

(Andarilho, 2006, Brasil). Pouco me lembro dos sonhos advindos da sonolência em que caí após fazer mais uma leitura de páginas de Proust*, mas me recordo de imagens e sensações oníricas que me fizeram vir à memória a minha última sessão de cinema no Cine Arte UFF. Dos efeitos do sono pouco se tem proveito, visto que as recordações das histórias são, em geral, um esforço psíquico que tende a se perder em divagações. Talvez nem este primeiro parágrafo também faça muito sentido, tamanha minha vontade em expressar as sensações de se acordar com um filme na cabeça e escrever sobre o mesmo minutos após as ligeiras impressões sobrevindas ao despertar.

Pode ser pelo fato de eu ter adormecido com palavras contemplativas à natureza que tenham me saltado aos olhos passagens que funcionariam muito bem como ilustrações de um livro de Proust, caso vivesse ele no Brasil, mais precisamente no interior, nas linhas das estradas que cruzam o país. O filme que justifica a prolixidade de quem vos escreve é Andarilho, do qual foi diretor, editor e fotógrafo Cao Guimarães.

O documentário presenteia os olhos com belíssimos planos observacionais, que faz das coincidências uma realidade que paralisa o espectador entre a liberdade e a crueldade como justificativas pelo andar sem rumo. Motivos estes não explicitados pelos personagens em forma de depoimento, ainda bem. A opção de Cao faz bem-vindos pensamentos e contemplações das caminhadas daqueles que podem estar ali por qualquer causa, talvez especulada por interessados em entender as dinâmicas sociais.

A antropologia e a filosofia hão de dar conta (?) do entendimento de uma pessoa que poderia ser somente aquela que vaga sem rumo, como um ser pensante que põe em dúvida a própria consciência, de maneira que a loucura aparece também como elemento essencial à compreensão do modo de vida. Além disso, quem disse que eles vagam sem rumo, ou como ainda dizem clichês, sem direção? Temos sempre um ponto de chegada? Quem desiste do rumo é louco por que faz do vagar uma opção de existência ou quem desiste do rumo é o louco que faz da vida uma opção? Ou ainda, será que não o faz obrigada por circunstâncias quaisquer? Pode mesmo ser considerado louco? E vagar seria a melhor forma de nos referirmos às ações deste?

Andarilho pode não conter respostas para as perguntas que evocam espaços meditativos das cenas que vemos passar. Somos espectadores privilegiados por temos a oportunidade de assistirmos a um registro daquilo que passa distraidamente por olhares apressados nas estradas. Nos é permitido o dom de descobrir a sabedoria que muitos escondem atrás de seus sacos de lixo, carroças improvisadas, farrapos de roupas e silêncios quebrados pela própria fala solitária no meio de onde a maioria corre com destino certo. Quando a câmera passeia pelo asfalto em ângulos singulares, andarilhos podemos ser nós por alguns instantes de ilusão. Razão que o tempo dá. Fruto adverso do que se vê na tela.

06 fevereiro 2009

Mais uma vez o pretexto natalino

(Un Conte de Noël, França, 2008). Silêncios preenchidos por olhares, diálogos curtos e secos entre uma família que se reúne desde antes o 25 de dezembro dão o tom de Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin. A data é ressignificada ao tematizar conflitos entre irmãos, primos, pais e filhos, num jogo de cenas fluidas que levam a todos a pensar que, apesar de tudo, há um problema maior: o câncer de Junon.

Desplechin tem uma minuciosa direção de cenas e principalmente o cuidado de destacar nuances do bom elenco. Destaque para a interpretação de Catherine Deneuve. Sua personagem Junon tem um ar de superioridade matriarcal, de uma mulher que beira a imponência, mas sem ser rude ao extremo. Também não passam despercebidos Mathieu Amalric, que interpreta o filho malquisto Henri, e Jean-Paul Roussilon, com Abel, personagem-dosagem para as inconstâncias internas dos outros.

Sem apelos ao suposto drama da doença, a história tem substância, charme, humor, como no momento em que Funia, a namorada de Henri (interpretada por Emmanuelle Devos) chega a casa e lhe atribui mais uma atmosfera de indiferença explícita a partir de diálogos que Desplechin não deixa cair em tom absurdo, tal como "Eu tenho câncer", "Eu sei (sorriso no rosto)". Ou ainda, quando, com naturalidade, mãe e filho admitem que não se gostam.

Há também crianças, do modo espertinhas e fofas a conversar com os adultos problemáticos. Não há exagero em categorizá-las num ritual de compensação à tensão provocada pela compatibilidade de medula do neto esquizofrênico, frente à mesma condição de Henri, que manifesta sua apatia ao se referir ao menino como "louco".

Escolher o natal para mostrar as imperfeições de uma família deu certo com Desplechin, com Selton não, mesmo com um roteiro arriscado de subtramas que são trazidas à tona durante as duas horas e meia de filme; mesmo com cortes e cenas que vez ou outra soam esquisitos; mesmo sendo feito (ou 'até porque é') para ser visto e revisto. E se já usei a palavra 'atmosfera', fico à vontade para empregá-la mais uma vez ao me referir a Um Conto de Natal, que nos dá a boa sensação de assistir a um filme diferente, acertado e coerente ao construir uma atmosfera sinestésica, sem ficar a parte do tal espírito natalino.