05 dezembro 2010

Film Socialisme


Aos 80 anos, Jean-Luc Godard, um dos grandes gênios da Nouvelle Vague, nos oferece a experiência de mais uma bela obra. Seus fragmentos — que tencionam o próprio cinema e, o tempo todo, a nós mesmos, espectadores — são partes desligadas de seu todo. Cada imagem, palavra, gesto, cena, ato, som, diálogo, abre um campo infinito de possibilidades. Uma ode à multiplicidade de interpretações (!), sempre ligadas a ironias, críticas, pessimismos e uma paixão pela História, pela política, pelo cinema, pela arte em geral e, principalmente, pela negação de tudo isto a favor de uma “questão”.

O diretor exclama um bravo não a cada passagem — embora tudo em Filme socialismo pareça ser bem mais do que algo que simplesmente passe. Godard nega o tema, a unidade, a abordagem clara, a comodidade da compreensão, o raciocínio lógico. Somos postos ao desafio da abertura, ao embate consciente e ao mesmo tempo inconsciente entre pensar e entender. Por vezes é impossível distinguir uma ação da outra, pois o que buscamos e, raras vezes, encontramos são vestígios do que se costura na tela. Com este novo Godard nos sentimos ainda mais vivos dentro do cinema. Godard agarra-nos pelo pensamento e seu método eficaz é de nos tornar ativos — do contrário, durma — diante de três movimentações distintas das imagens.

Na primeira parte, temos um filósofo e uma cantora a bordo de um cruzeiro pelo mar Mediterrâneo discorrendo sobre assuntos sobrevindos por geração espontânea. Comentam-se sobre dinheiro, geometria e História em uma conversa desprovida de fluidez. O som é interrompido, a imagem é intercalada com resoluções caseiras e a linearidade é insustentável.

Do mesmo jeito é na peça seguinte, quando Godard se aproxima de uma família que recebe uma jornalista e uma cinegrafista. Elas, à espera de uma conversa com os pais, acabam se rendendo a uma sabedoria questionadora das crianças da casa. Neste capítulo de Filme socialismo, há a cena magistral de um menino que, em contraponto à infantilidade natural à idade, nos remete a uma vivência adulta. O menino nos mostra o quanto é preciso abrir-se ao olhar quando trava um diálogo provocativo com a cinegrafista. “Isto é um Renoir”, ela diz enquanto o observa pintar um quadro. “Não. Há muitas coisas que Renoir não enxergou”, retruca o garoto.

Já no último ato, Godard monta, em voice over, uma espécie de colagem e caminha por entre imagens de Odessa, Egito, Palestina, Grécia, Barcelona e Nápoles. Aqui, é possível compreender mais claramente o que disse em uma edição da década de 50, na Cahiers du Cinéma: “Se dirigir é um olhar, montar é um bater do coração”.

É impossível assumir um papel de crítica, que tanto necessita de uma iluminação sobre o filme, diante de um Godard que a rejeita. Atente: aqui, nada se esgota. O diretor demonstra que não está entre a imagem e sua visibilidade, mas sim numa posição que o coloca entre linguagem e visão. Pois é deste modo que o diretor consegue estabelecer uma relação com o social, a sociedade, o socialismo. Mas nada disso no sentido que estamos habituados a ver, ouvir ou falar. Colocando-se como sujeito que observa o mundo e toma como instrumento o pensamento, é a imagem — e o vídeo — que nos fará partilhar de uma sociedade aberta para as ideias e para os ideais. É assim que Godard prega a liberdade.


Publicado originalmente em dezembro de 2010 no site Laboratório Pop.

1 Expressões:

Gomorra disse...

Acabo de ver o filme que tu comentaste aqui e, de coração: estou delsumnrado com teu 'blog'! Não somente teus pontos de vista são geniais como a sensibilidade para escolher temas beira a divindade religiosa que agora toma conta dos filmes recente do titio Godard. De coração, estou encantado com teu 'blog'. Brilhante descoberta! Obrigado ao teu pai por este K!

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