28 maio 2010

(The Ghost Writer, EUA, 2010). Tentar tocar nas idiossincrasias de um diretor pode ser um método muito mais interessante do que se lançar num superficial e fácil desvendamento de coincidências entre sua vida pessoal e as histórias que retrata em filmes. Desafiar-se a entender o comportamento estético e estilístico não obscuro, porém peculiar, de Roman Polanski se apresenta, então, como opção que tende a valorizar seus recursos diante do roteiro. E não o contrário, com roteiro e recursos à mercê de razões possivelmente acidentais.

Ewan McGregor em claustrofobia e terror psicológico, em algumas poucas cenas de ação efetiva, interage com Pierce Brosnan no papel do ex-primeiro ministro britânico, Adam Lang. O poder, a relação com a mídia e a forma com que o personagem de Brosnan, em convincente e forte atuação, se posiciona diante da guerra no Oriente Médio, apresenta espectros de Tony Blair. Brindemos o sarcasmo! No início, o personagem de McGregor incorpora com ênfase que não entende de política, mas bastam apenas algumas imersões no universo de Lang para que comece a compreender sobre o que se trata este mundo. Mundo perverso e corrupto, diz Polanski.

O thriller político é conduzido pela convocação do escritor sem nome, apenas chamado de The Ghost, com a finalidade de dar continuidade à autobiografia do ex-primeiro ministro. O primeiro a se aventurar no feito acabara de ser morto e permanece durante todo o longa como referência de destino ao substituto. Esta referência é fantasmagórica, uma vez que nos serve de assombro e dá margem a imaginarmos o que pode acontecer ao novo escritor. Um fantasma ao novo fantasma possibilita a formação de uma pré-história, a ponto de criar uma interação com o espectador interessado em descobrir o futuro do filme. Alguma coincidência o nome do livro de Robert Harris, adaptado por Polanski, se chamar apenas O Fantasma?

A fonte de espanto de O Escritor Fantasma então surge não pelo mascaramento de quem compila informações para um livro que levará a autoria do biografado. Mas, sim, pelo badalar da trilha sonora e cenários frios e universais envolvendo uma trama que investe no suspense.

Quase com unanimidade, a crítica internacional compara o filme a produções hitchcockianas. A comparação talvez não seja nenhuma surpresa, já que o cinema feito pelo mestre do suspense tenha servido de modelo e inspiração para muitos outros diretores do cinema de gêneros. Brian De Palma seria um desses, além do próprio Polanski, que já se consolidou tão bem em filmes como Chinatown e Bebê de Rosemary, venceu Oscar por O Pianista e, agora, põe em cartaz um filme após a turbulência de um julgamento. As investidas do diretor polonês, portanto, segue um rito clássico, mas com pegadas próprias.

Convencional? Sim, mas é assim que se constitui toda a história do cinema em seus simulacros, e que se orienta a produção de milhares de filmes. Assim, o que Polanski dita em seu thriller de personagens dados ao conflito por situações — e não por conflitos interiores puros — se confirma como estilo. Podendo ser destacada de todo o filme como um trecho autônomo e inventivo, a última cena de O Escritor Fantasma consegue nos arremeter para um crescendo de tensão que termina num plano de câmera estática, elíptico em relação à imagem. O que não vemos colabora para diversas interpretações. E o jogo de adivinhação que se estabeleceu ao longo de todo o filme ganha um clímax capaz de torná-lo contínuo mesmo depois dos créditos finais. O fantasma continua vivo.

21 maio 2010

(Quincas Berro D'água, Brasil, 2010). Sob o mar, vemos um corpo afundando ao som de uma lamentação que saúda a morte. São frases envolvidas em efeitos sonoros narradas com marcação teatral. Este é o início e o fim. Aqui, a morte não é o clímax, a surpresa ou desfecho. O título da obra adaptada prenuncia a conceituação mostrada às claras sobre o que é viver e o que é perder a vida: A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água. A morte e a morte. A repetição não significa, de modo algum, igualdade. São dois momentos que também poderiam aparecer como A Morte e a Vida, e vice-versa. Importa é que a cronologia natural, nesse caso, será sempre invertida mesmo.

Graças a Jorge Amado, que teceu a história do personagem em meio à boemia de Salvador, esses conceitos são definidos sem gratuidade. O estilo do escritor pode ser observado nas falas, no gingado dos homens, no rebolado das mulheres, na malandragem instintiva com que os baianos sobem e descem as ladeiras. Contudo, o texto na boca dos personagens, por mais que denotem essa contribuição do autor da obra, são desprovidas de naturalidade. Diálogos se aproximam de um arcaicismo recente e causam estranheza como um dialeto. A aproximação do texto cinematográfico com o estilo literário de Jorge Amado então demonstra um esforço em direção a um experimento fílmico. Nada de acertos ou erros. É uma questão de condução da mistura entre diferentes gêneros. O destino aonde isto nos leva é bem mais interessante.

O personagem principal é onipresente. O longa inteiro conta com a narração póstuma de Quincas. A primeira pessoa nos mantém próximos ao personagem. Seu modo de olhar, seu jeito de encarar os fatos, causa empatia. Também em parte porque é Paulo José seu intérprete. O morto é tratado como vivo por seus amigos, verdadeiros amigos, pertencentes à plebe soteropolitana. O contraponto é dado pelo bendito comportamento social da família genética de Quincas. Família tradicional de classe média, com conduta de rabo de olho de reprovação às prostitutas nas esquinas por onde o pai, o marido e o sogro que foi Quincas resolveu andar, para se satisfazer com o mundo. O mundo que passou a ser seu depois que partiu. Temporariamente, mas foi.

O grotesco, então, se dá pelas farras. E se divertir, aqui, não se manifesta apenas pela alegria ou pelos prazeres. Divertir-se, aqui e ali, também é verter. Transbordar limites, superar regras sociais. Jorge Amado revelou esta fonte crítica em muitos de seus livros — Capitães de Areia é o mais famoso exemplo. O baiano Sergio Machado aproveita para explicitar isso em Quincas Berro D’água assim como o tornou elemento de Cidade Baixa (direção e roteiro), Madame Satã e Abril Despedaçado (roteiro).

O diretor não esconde as reflexões passíveis de impregnar os espectadores após o filme; fica até didaticamente claro. Esse resultado intelectual dignifica as cenas, feitas com propósitos de comédia, mas que se encerram como representação. O riso poucas vezes emerge como no clássico americano Um Morto Muito Louco (1989) ou no indiano Jaane Bhi Do Yaaro (1983). Quincas Berro D’Água: uma representação — mais do que atuação —, como abordagem do existencialismo. Não é sisudo, porém; não é gritantemente substancial, nem carregado de pessimismo, como Brás Cubas analisa seus "causos" à pena de Machado de Assis.

Mergulhar no universo de Jorge Amado, em forma e conteúdo, acrescenta e eleva o filme de Sergio Machado. Tira o peso das costas de Quincas ser só mais uma comédia. E é também por isso que a história ganha ainda mais veemência quando contada.

10 maio 2010




(The Imaginarium of Doctor Parnassus, 2009, EUA). Ressignificar imagens já seria, por si só, um trabalho natural de todo cineasta. Ao menos, aos que prezam por significantes e aos que, em símbolos, contam histórias pelo subtexto que mascaram por detrás da realidade fílmica. Entretanto, em comparação a filmes ditos fáceis e relativamente simples, alguns se destacam pela valorização extrema da linguagem visual. A força da imagem aparece em larga escala em filmes de Tim Burton, por exemplo, mas, ainda assim, não representam mais do que um estilo, mais do que um elemento estético de conceituação. O que Terry Gilliam faz em The Imaginarium of Doctor Parnassus, no original, tem precedentes, claro — talvez até mais nas artes plásticas —, mas no cinema é algo que sempre se define como um diferencial estilístico. E não são apenas cenários, maquiagem e figurino que dão brecha a tal afirmação.


O consciente-inconsciente do Dr. Parnassus, ancião do grupo teatral, é composto pela profusão de elementos reconhecíveis e nomináveis, porém, em condensação. Não é algo que mereça classificação. Para longe de maniqueísmos da imagem, o desconforto é causado no primeiro instante em que belo e esquisito entram em choque no mundo imaginário. Apesar da visita ao paraíso infernal da mente, Gilliam faz questão de mostrar a imersão no irreal como uma panacéia. Não à toa, Parnassus recebe o título de doutor.

Terry Gilliam parte de referenciais que permeiam a linguagem teatral e a surrealista. Elas dialogam entre si, apesar de representarem dois mundos: o real e o imaginário, cuja posse é única, mas penetrável. O longa traz uma trupe vaudevillesca em crise de público. A atração, não mais tão atrativa, é o transporte para o mundo surrealista de Gilliam. Sim, do diretor. Por mais, que fique claro a quem pertencem os devaneios invadidos por espectadores, o mundo irreal do filme é algo que jamais poderá se distanciar das idiossincrasias de quem a projetou. Não fica claro se Parnassus tem total controle sobre sua mente. E o que temos, aqui, é um universo que causa estranheza, um certo incômodo. O nonsense também está presente e em sublinhas se assemelha ao do grupo Monty Python, cuja fundação tem dedo de Gilliam.

O convite à subversão da realidade é feito pela jovem de beleza genuína interpretada por Lily Cole, um anão, o já mencionado senhor protagonista e um rapaz. Todos formam o grupo itinerante, que ganha um reforço com o personagem de Heath Ledger. Após sua morte, a substituição feita por três atores (Colin Farrell, Jude Law e Johnny Depp) se justifica como uma boa saída. Também não é lá muito difícil alterar formas quando o jogo fílmico se baseia na constante movimentação.

Uma figura diabólica, com a qual o doutor faz um pacto, se afirma como elemento estopim da trama — e de pequenos estopins o filme está cheio. A todo momento, O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus vivencia um novo clímax. Tamanha impulsão só é esclarecida por Gilliam e seu co-roteirista Charles McKeown como objeto narrativo. Talvez não haja mesmo mais do que uma trama a ser orientada em prol de críticas à exploração da própria imagem, a exemplo de celebridades, e ao consumismo. É com sutileza que o diretor o faz, embora o clima do filme se mantenha como caótico desde o início. Coerente.

06 maio 2010

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