21 maio 2010

(Quincas Berro D'água, Brasil, 2010). Sob o mar, vemos um corpo afundando ao som de uma lamentação que saúda a morte. São frases envolvidas em efeitos sonoros narradas com marcação teatral. Este é o início e o fim. Aqui, a morte não é o clímax, a surpresa ou desfecho. O título da obra adaptada prenuncia a conceituação mostrada às claras sobre o que é viver e o que é perder a vida: A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água. A morte e a morte. A repetição não significa, de modo algum, igualdade. São dois momentos que também poderiam aparecer como A Morte e a Vida, e vice-versa. Importa é que a cronologia natural, nesse caso, será sempre invertida mesmo.

Graças a Jorge Amado, que teceu a história do personagem em meio à boemia de Salvador, esses conceitos são definidos sem gratuidade. O estilo do escritor pode ser observado nas falas, no gingado dos homens, no rebolado das mulheres, na malandragem instintiva com que os baianos sobem e descem as ladeiras. Contudo, o texto na boca dos personagens, por mais que denotem essa contribuição do autor da obra, são desprovidas de naturalidade. Diálogos se aproximam de um arcaicismo recente e causam estranheza como um dialeto. A aproximação do texto cinematográfico com o estilo literário de Jorge Amado então demonstra um esforço em direção a um experimento fílmico. Nada de acertos ou erros. É uma questão de condução da mistura entre diferentes gêneros. O destino aonde isto nos leva é bem mais interessante.

O personagem principal é onipresente. O longa inteiro conta com a narração póstuma de Quincas. A primeira pessoa nos mantém próximos ao personagem. Seu modo de olhar, seu jeito de encarar os fatos, causa empatia. Também em parte porque é Paulo José seu intérprete. O morto é tratado como vivo por seus amigos, verdadeiros amigos, pertencentes à plebe soteropolitana. O contraponto é dado pelo bendito comportamento social da família genética de Quincas. Família tradicional de classe média, com conduta de rabo de olho de reprovação às prostitutas nas esquinas por onde o pai, o marido e o sogro que foi Quincas resolveu andar, para se satisfazer com o mundo. O mundo que passou a ser seu depois que partiu. Temporariamente, mas foi.

O grotesco, então, se dá pelas farras. E se divertir, aqui, não se manifesta apenas pela alegria ou pelos prazeres. Divertir-se, aqui e ali, também é verter. Transbordar limites, superar regras sociais. Jorge Amado revelou esta fonte crítica em muitos de seus livros — Capitães de Areia é o mais famoso exemplo. O baiano Sergio Machado aproveita para explicitar isso em Quincas Berro D’água assim como o tornou elemento de Cidade Baixa (direção e roteiro), Madame Satã e Abril Despedaçado (roteiro).

O diretor não esconde as reflexões passíveis de impregnar os espectadores após o filme; fica até didaticamente claro. Esse resultado intelectual dignifica as cenas, feitas com propósitos de comédia, mas que se encerram como representação. O riso poucas vezes emerge como no clássico americano Um Morto Muito Louco (1989) ou no indiano Jaane Bhi Do Yaaro (1983). Quincas Berro D’Água: uma representação — mais do que atuação —, como abordagem do existencialismo. Não é sisudo, porém; não é gritantemente substancial, nem carregado de pessimismo, como Brás Cubas analisa seus "causos" à pena de Machado de Assis.

Mergulhar no universo de Jorge Amado, em forma e conteúdo, acrescenta e eleva o filme de Sergio Machado. Tira o peso das costas de Quincas ser só mais uma comédia. E é também por isso que a história ganha ainda mais veemência quando contada.

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